domingo, dezembro 06, 2015

ele disse que talvez voltasse aquela noite

ele deixou no sofá um papel de bombom
e uma taça vazia de vinho
ele deixou na casa o som dos passos que trouxe da rua
e a porta aberta do banheiro
ele deixou seu território marcado
e disse que talvez voltasse aquela noite
e me faria esquecer das sombras e dos abismos
que traria mais duas garrafas de vinho francês
ele disse que talvez voltasse aquela noite
com um livro de poemas que eu já tinha
ele não voltou aquela noite
mas um vento frio veio de algum lugar
e entrou sem timidez pela fresta de alguma janela

terça-feira, outubro 06, 2015

o cara que veio entregar pizza

arte: rafael godoy

o cara que veio entregar pizza olhou o filme que passava na tv
eu com a pizza na mão e ele olhando a tv
o cara me disse que a vida parecia aquele filme
que contava a história de um mundo sem futuro
a terra deserta vermelha só com mortos-vivos
o cara que veio entregar pizza me disse que teve um sonho
igual ao filme que passava
e ele olhava o filme e a pizza esfriava na minha mão
o cara que entregava pizza não quis o dinheiro
o seu olhar ficou triste
e ele disse que entendeu tudo
o cara que entregava pizza foi encontrado vagando
pelas ruas da cidade
o céu era vermelho e as pessoas
entravam nos shoppings com olhos sem vida

sexta-feira, setembro 04, 2015

constatação

                                                                 arte: rafael godoy

queria não ter esses olhos
essa pele
nem essa alma perdida 
que se comove com o mundo

terça-feira, junho 30, 2015


quando a noite veio me esmagar com suas mãos frias
quando não tive saída abri a porta da sala

e você entrou

seus olhos eram mais gelados
que o silêncio dos pássaros noturnos
mas suas mãos ágeis deixaram em mim
o gosto quente e claro das manhãs de inverno

segunda-feira, junho 29, 2015

tem uma inconfundível e inexplicável melancolia
quando é inverno e o dia é claro e frio
só isso que posso dizer agora
só isso que me faz querer ficar aqui parada
sentindo o vento gelado
e tentando entender a humanidade
ou a falta dela
é isso que talvez me faça querer a noite
e tomar o vinho que está guardado no armário da sala

quarta-feira, junho 24, 2015

até ontem

vim como quem não quer nada
e entrei na noite como se dela tivesse nascido
até ontem não gostava das pessoas do dia
não gostava das cores do calor
e de tudo que se fazia de dia

entrava na noite e nela me perdia
com os olhos fundos a cara pálida
encontrava gente com essa mesma cara
às vezes muito maquiadas
e pareciam artistas de cinema-mudo
olhava para elas como se soubesse o que faziam ali
escondidas no fundo dos bares ouvindo blues e jazz
o nariz e os olhos dançando

reconhecia quem era da noite
e quem estava ali vindo do dia
podia pensar que eram felizes
suas roupas brilhavam e brilhavam seus cabelos
falavam dos poetas góticos e dos impressionistas
dos beatniks e do cinema francês
conheciam um bom vinho e a pior cachaça
e pensavam que podiam mudar alguma coisa
neste mundo tão pobre
e mesmo nobres
comiam pão com mortadela

e eu vim com a noite e nela me escondia
e me encantava com a vida desse seres
e fazia parte desse mundo escuro
de pouca luz e gestos serenos

até ontem gostava deles
e posso ser um deles
mas hoje vi a luz do sol
e deixei que aquecesse minha cama fria

quarta-feira, junho 10, 2015

o caso do camaleão


sempre odiei reunião de condomínio e raramente participei de uma, a não ser quando fui síndica, porque não tinha jeito de escapulir. mas um dia, o rafa, meu primogênito, disse que tinha visto um rato passeando pelo apê. na época o prédio era habitado praticamente por senhores e senhoras mais ou menos idosos. fiquei intrigada e preocupada com aquilo e lá fui eu à reunião pra falar com o síndico e com os moradores, a fim de saber se eles também tinham visto algum roedor no edifício. minha casa era a mais movimentada e barulhenta de todas, com dois adolescentes, os amigos, os amigos dos amigos deles e os meus amigos. os anciãos achavam que minha casa era um ninho de perdição. um antro de drogados. não nos viam com bons olhos. mas mesmo assim resolvi enfrentá-los. o meu horror a ratos era maior e eu tinha que dar uma resposta pro rafa. pois bem. cheguei lá na cara dura e expus o fato. todos me olharam como se eu fosse um et e cochicharam entre si e, quase ao mesmo tempo, disseram: "não era rato, era camaleão!". pensei: "mas camaleão na zona urbana, no brasil?" e eles reforçaram: "você nunca viu camaleões nas paredes do prédio, nos corredores?" eu disse que não e respondi: "meu filho viu um rato!". eles afirmaram: "mas não é rato, é camaleão! o controle remoto de sua casa, por exemplo, pode ser um camaleão disfarçado!" "seu filho deve estar chupando drogas!" saí da reunião convicta de que eles estavam certos, abri a porta do apê, o rafa me olhando ansioso, e eu disse muito brava: "rafa, você tá chupando drogas?"

sexta-feira, abril 24, 2015

anjo caído


Ele entrou e disse que estava frio lá fora. Bebeu o café quase frio e acendeu um cigarro. Disse que aquele dia tinha visto algumas pessoas que o seguiam. Jurou que não era paranoia. Perguntou sobre os gatos e se esticou no sofá. Falou sobre o possível apocalipse, mas disse que não acreditava em anjos. Elogiou a música que tocava, acho que Coltrane, e falou que nesse momento vinha uma paz quase inevitável ou que a vida tinha algum sentido. Pediu pra eu soltar os cabelos pra sentir o cheiro do xampu. E ainda, com voz baixa e com os braços fortes, me puxou para o seu lado e me deu um longo beijo. Sua boca tinha gosto de menta, provavelmente, alguma bala para tirar o gosto do cigarro. Estava intensamente sensual, com os cabelos despenteados e cheiro de chuva. Dormi em seus braços e quando acordei já tinha ido embora. Ele era assim, aparecia em qualquer hora, dizia coisas sem sentido ou ficava preso em seu silêncio. Eu entendia esse homem de poucas palavras e gestos definitivos. E ele sabia disso. Talvez fosse ele um anjo caído por acaso em minha vida.


arte: rafael godoy

quinta-feira, abril 23, 2015

sabe aquela hora em que você começa a pensar mais. era assim. quando o dia anoitecia, vinha aquela angústia louca. ficava por um bons momentos vendo o pôr do sol, olhando a sombra do pássaro na luz quase morta da tarde. e cada vez mais queria que só tivesse a noite e o som das pessoas indo embora ou entrando nos botecos. e vinha aquela vontade de encher a cara e escrever tudo que tava lá dentro de sua cabeça. entrava em algum copo sujo e encontrava aquele filósofo bêbado de plantão que não falava coisa com coisa. e vinha aquele amigo que sempre tinha um problema pra contar. e vinha a solidão inevitável de sentir que não fazia parte de nada. e se via rindo com o amigo falando besteiras.  mas o que queria mesmo era tentar tirar de dentro de sua cabeça aquilo que o atormentava sempre que o dia estava indo embora. só queria fazer um verso que ninguém esquecesse. e quando amanhecia não lembrava de quase nada. encontrava alguns pedaços de papel amassado com frases soltas e palavras sem sentido. então só queria dormir e pensar que o mundo às vezes podia ser um bom lugar pra sonhar.

quarta-feira, abril 22, 2015

Pero Jaz


Pero Vaz, vazio de alma e rico de letras
Não entendia a nudez das índias
A beleza de nossas terras
Pensava ele ser o arauto do nosso esplendor
Dono da natureza escravo de seu rei

Pero Vaz Caminha caminhou
Por terras nunca dantes caminhadas
E naufragou no seu assombro
Mergulhou fundo no seu espanto

Mandou ao rei carta que dizia
Não compreender por que o sol
Estava na terra em pequenos pedaços de areia
Que o verde se encontrava também em minerais
Chamados esmeraldas
Que o vermelho do sangue
Derramado em seu caminho
Em lutas contra os imberbes primitivos
Concentrava-se em pedras chamadas rubis
Dizia ser as vergonhas das índias
Vergonhosas demais
E sem pelos ou roupas para cobri-las
Cobriu-as de pegajosos excrementos
Despejados de seus rins
Como também o fizeram todos os lusitanos
Que na terra estavam, sendo jesuítas ou ateus
E fertilizaram nosso solo com suas impurezas
E violaram o sagrado mistério de nossas mulheres

E ali nascia um novo povo
Crianças mamelucas mestiças mulatas
Com cabeças pequenas demais para pensar
Com o cheiro acre-podre de seus pais

E crescendo viram a terra que não lhes pertencia
Que jamais seria genuinamente sua
E deixaram entrar nobres, bárbaros e plebeus
Varões, eunucos, negros,
Brancos, amarelos,garanhões

E quanto mais gente se formava
Mais a terra lhes era tirada
E desde mil e quinhentos anos
A terra continua lhes sendo roubada

E mesmo que clamem os profetas
Mesmo que chorem os da natureza amantes
Mesmo que sequem todos os rios
Mesmo que acabem todas as matas
Mesmo que não exista mais fauna
Mesmo que morra mais e mais gente
A terra nunca lhes pertencerá

E Pero Vaz de Caminha
Na sua ignorante sabedoria
Jaz em sua terra zombando daquela gente

E no ano da graça de dois mil e tantos
Acharam em seu túmulo
Esmeraldas, ouro e rubis
Encontraram em seu túmulo
Uma pergaminho de brilhantes
E uma inscrição com tinta de pau-brasil
Com os dizeres amaldiçoados:
"Mesmo que se plante nesta terra
E aqui se plantando tudo dá
Mesmo que germinem todas as sementes
A esse povo não caberá nenhum quinhão"

E feliz jaz Pero Vaz em seu leito de morte
Coberto de todos os brilhantes
Sabendo que a sua praga vingará
E assim foi
E assim será
(poema feito de brincadeira, a partir de uma aula de literatura sobre a carta de Caminha aos alunos do ensino médio)

sábado, março 21, 2015

lançamento do meu livro: "Mil Noites e um Abismo"






Lançamento do primeiro livro solo de Adriana Godoy. 'Mil noites e um abismo' (Editora Crivo) reúne poemas da autora, já publicados em seu blog (driaguida.blogspot.com.br) e em seu perfil do Facebook. 
Adriana Godoy gosta da noite, dos bares, da lua, dos perdidos e, talvez, por isso, seus textos quase sempre remetem à noite e aos abismos interiores. 

Sobre a autora: 
Adriana Godoy é mineira, nasceu em Belo Horizonte onde sempre viveu. Formada em Letras pela UFMG, trabalha como professora e revisora.
Desde pequena escreve, mas foi a era dos blogs que tornou seus textos mais conhecidos. 
A autora participa de outros blogs e revistas literárias; alguns de seus poemas também foram publicados no livro 'Maria Clara: universos femininos', coletânea organizada por Hercília Fernandes, em 2010.

terça-feira, fevereiro 24, 2015

fragmento


                                                       arte: rafael godoy

                                         "minha juventude ficou perdida nas noites da cidade
                                         e nos olhos intensamente brilhantes dos meus filhos"

quinta-feira, janeiro 29, 2015

entre insônia e fantasmas
despejo na noite
o que não colhi do dia

domingo, janeiro 11, 2015

foi aquilo que me disse que me tirou do chão e me fez querer sair dali correndo, mesmo com tanto calor e com tanta gente em volta. foi só uma frase que me fez arrepender de ter saído e ter bebido tanta cerveja e vodka com o sol na cabeça à lô borges, mas não tinha trem azul, só você do meu lado. tava tudo bem, juro que tava gostando. a música tava boa, o lugar bom. eu podia fumar sem ninguém me olhar com cara de nojo. porque era aberto, sem toldo, só com aquelas árvores que podiam dar alguma sombra. eu podia te beijar sem ter medo de alguém ver porque isso não era importante naquele momento. eu podia lembrar de coisas que vivemos juntos há muito tempo e a gente rir feito criança. a conversa tava boa, lembranças de coisas e pessoas que tinham ficado no passado junto com você. mas aí tinha que falar aquela merda. não precisava, cara. mas você falou. e em uma fração de segundo nada daquilo ali fazia mais sentido.

domingo, janeiro 04, 2015

cenas de rua


no vago tom da noite
a árvore parada e morna
com seus galhos feito mãos inúteis
assombram os que passam distraídos
o passeio é um deserto esticado
 a rua com asfalto recente geme
quando carros deslizam loucamente
com suas buzinas ensurdecedoras

do outro lado da rua
um homem fuma solitariamente
não sorri, apenas olha a fumaça que sobe
a moça passa: "tem fogo"?
nesse momento o seu corpo é uma fogueira
a moça mostra o cigarro apagado e ergue a mão
"tem fogo?"- repete
ele todo é uma fogueira
a moça sorri com o cigarro apagado
o homem arde e olha a fumaça que sobe
a moça já virou a esquina

um cão atravessa a rua
as pessoas dormem com janelas fechadas
a luz vermelha e azul do carro de polícia
a sirene que berra
um bêbado solitário conversa com a noite
uma lua pálida no céu
o homem com um cigarro aceso entre os dedos
caminha lentamente para nenhum lugar