quinta-feira, dezembro 15, 2011

dia molhado

            arte: rafael godoy

 morri ontem mais uma vez
e minha alma perambula por essas ruas de lama e chuva
a cidade chove demais e não para
o rio arrudas transborda e joga o lixo nas calçadas
sou o que resta de mim
e não é bonito o que tenho agora ou terei depois
não posso pular
ou salvar as pessoas debruçadas ali
as luzes de natal são molhadas e frias
as capas e os guarda-chuvas  respingam
incomodam
vejo o que não queria ver
mas tem uma flor que boia no rio
o mar está longe
estou  parada na chuva
e olho o rio de lama invadindo a cidade
minha alma molhada sai pelos olhos
mas  me lembro de uma música de tom
pode ser que amanhã venha o sol
ou chova de novo na roseira

quinta-feira, dezembro 08, 2011

o velho da janela

                                                           arte: rafael godoy
Ontem não o vi mais ali.
O velho que ficava na janela em frente à minha tinha morrido.
De uma forma estranha: bebeu duas taças de champanhe, ficou verde e se foi.
Não que eu tivesse alguma simpatia por aquele sujeito. Na verdade, me incomodava demais.
Sempre estava lá, nos momentos mais inoportunos. Vivia sem camisa e o seu porte avantajado dava a impressão de que era muito  mais jovem do que seus oitenta e três anos. Sua voz, como percebeu o meu filho, era de um garoto.
Mexia com todos que subiam ou desciam a rampa, principalmente, com as viúvas. Como um predador, dizia que estavam lindas e que queria namorá-las. Umas aceitavam o elogio e sorriam timidamente. Outras, o achavam inconveniente. Mas, de uma certa forma, o velho preenchia as suas vidas.
Por incontáveis vezes, tive que fechar a cortina, pois com seus olhos indiscretos entrava em meu apartamento e me despia com o seu olhar de rapina, embora, muitas vezes, já estivesse nua.
Gostava quando abria a janela e ele, por algum motivo, tinha perdido a cena. Era como se eu tivesse vencido algum lance de jogo de cartas ou feito um gol de placa.
Nunca soube o seu nome, até ontem, quando a zeladora me contou sobre a sua morte:
- O Seu Manoel morreu, disse-me ela.
- Quem?
- O Seu Manoel do 407!
-Ah! Que pena! respondi-surpresa e escondendo o meu alívio!
Até hoje não sei por que ele me deixava tão irritada.
Mas, ontem, senti a sua falta e, embora soubesse de sua morte, fechei as cortinas, quando saí do banho, enrolada em uma toalha.
Por um momento, ao olhar a janela em frente, vislumbrei uma sombra e uma risada que conhecia bem.
 E, quando saí de casa, ao atravessar a rampa, não olhei mais para cima. Mas tinha certeza de que ele estava lá. Ou o seu fantasma. 


( Hoje, depois de alguns anos, vi novamente o velho da janela. Juro que ele estava lá)