quarta-feira, novembro 30, 2005

PERO JAZ

(imagem google- carta de caminha- Cândido Portinari)
Pero Vaz, vazio de alma e rico de letras
Não entendia a nudez das índias
A beleza de nossas terras
Pensava ele ser o arauto do nosso esplendor
Dono da natureza escravo de seu rei

Pero Vaz Caminha caminhou
Por terras nunca dantes caminhadas
E naufragou no seu assombro
Mergulhou fundo no seu espanto

Mandou ao rei carta que dizia
Não compreender por que o sol
Estava na terra em pequenos pedaços de areia
Que o verde se encontrava também em minerais
Chamados esmeraldas
Que o vermelho do sangue
Derramado em seu caminho
Em lutas contra os imberbes primitivos
Concentrava-se em pedras chamadas rubis

Dizia ser as vergonhas das índias
Vergonhosas demais
E sem pêlos ou roupas para cobri-las
Cobriu-as de pegajosos excrementos
Despejados de seus rins
Como também o fizeram todos os lusitanos
Que na terra estavam, sendo jesuítas ou ateus
E fertilizaram nosso solo com suas impurezas
E violaram o sagrado mistério de nossas mulheres

E ali nascia um novo povo
Crianças mamelucas mestiças mulatas
Com cabeças pequenas demais para pensar
Com o cheiro acre-podre de seus pais

E crescendo viram a terra que não lhes pertencia
Que jamais seria genuinamente sua
E deixaram entrar nobres, bárbaros e plebeus
Varões, eunucos, negros,
Brancos, amarelos,garanhões

E quanto mais gente se formava
Mais a terra lhes era tirada
E desde mil e quinhentos anos
A terra continua lhes sendo roubada

E mesmo que clamem os profetas
Mesmo que chorem os da natureza amantes
Mesmo que sequem todos os rios
Mesmo que acabem todas as matas
Mesmo que não exista mais fauna
Mesmo que morra mais e mais gente
A terra nunca lhes pertencerá

E Pero Vaz de Caminha
Na sua ignorante sabedoria
Jaz em sua terra zombando daquela gente

E no ano da graça de dois mil e tantos
Acharam em seu túmulo
Esmeraldas, ouro e rubis
Encontraram em seu túmulo
Uma pergaminho de brilhantes
E uma incrição com tinta de pau-brasil
Com os dizeres amaldiçoados:
"Mesmo que se plante nesta terra
E aqui se plantando tudo dá
Mesmo que germinem todas as sementes
Mesmo que nasçam seres mais inteligentes
A esse povo não caberá nenhum quinhão"

E feliz jaz Pero Vaz em seu leito de morte
Coberto de todos os brilhantes
Sabendo que a sua praga vingará
E assim foi
E assim será

(poema republicado , feito a partir de uma aula de literatura dada por mim sobre a carta de Caminha aos alunos do ensino médio)

domingo, agosto 28, 2005

ELES

imagem do google
No dia em que estava acorrentada
aos pés da mesa de meu pai
Vieram todos eles
De uma só vez e sussuraram maldições

Vieram todos de uma só vez
Nenhuma pena tiveram
Vociferavam palavrões
Diziam coisas impróprias
Não ligaram para os meus olhos
Não ligaram para meu choro mudo

Acorrentada ainda estava
E dançavam à minha volta
Mostravam seus corpos nus e retorcidos
E quase ingênuos e quase maus
Deliravam em seu êxtase

Falavam línguas estranhas
E exibiam sua enormes línguas
Viscosas e vermelhas
Às vezes as tocavam em mim
E eram quentes
E eram úmidas

Ainda acorrentada
Ainda atormentada
Vi pouco a pouco
Todos eles indo em direção à porta
Que estava entreaberta

E fugiam delicadamente
Saíam em harmonia
E eu ali acorrentada
E eu ali apavorada

E quando meu pai chegou
Abriu o cadeado
E me soltou das correntes
Perguntou:
"Está com fome, menina?"

Nenhum som saiu de minha garganta

Ele pegou o chicote
E me deu algumas chibatadas
E me disse: "Faço isso para o seu bem"

Respondi docilmente:
Sim, meu pai
E fiquei olhando aquela porta
Esperando que eles voltassem

E de novo meu pai saiu
E de novo me acorrentou
Mas nunca mais eles vieram
Nunca mais ouvi as suas línguas

Estava finalmente amaldiçoada
A solidão para sempre
Apenas um som
A voz de meu pai
Que perguntava sempre:

"Está com fome, menina?"

E eu disse naquele dia:
"Sim, meu pai"
Ele guardou o chicote
E vi em seus lábios
Um ligeiro sorriso

( texto escrito há mais tempo)

sábado, agosto 20, 2005

Quando um cara disse...

Quando um cara disse que Bethoveen, ao sintetizar a Quinta Sinfonia em variações sonoras, mas irredutíveis e magnificamente significativas e eternas, tchan, tchan,tchan, tchan teve que antes criar milhões de outras variações até encontrar a perfeita, pude entender o que é ser realmente um artista, no campo literário, poeta. Talvez por isso, goste de hai-kais, mas hai-kais mesmo, em que Bashô, é o grande mestre. No Brasil, Leminsk, um dos melhores.
Em relação a outros tipos de poemas, pude entender, de certa forma, que o que vem dos toques mágicos dos dedos, da alma, também devem ser irredutíveis. Não tem que se pôr ou tirar alguma coisa. Tem que se sentir e dizer: É isso!!! É isso mesmo! Então, quando um cara disse sobre a Quintaa Sinfonia, me lembrei do Guga ( velho mestre) e da Luísa ( sua herdeira ) . Então pude dizer: Eis aí dois grandes poetas. E me senti um pouco feliz por conhecê-los e poder admirar os seus poemas. Que não se percam no tempo e na noite, que fiquem eternamente sobre nós, protegendo-nos um pouco da mesquinhez da vida.

domingo, junho 19, 2005

terça-feira, maio 31, 2005

Beco da Lua


um dia senti que aquele era o lugar
um beco com casas velhas e malcheirosas
que abria o seu sorriso para o mundo
um beco cujo cheiro de café
misturava-se ao cheiro das moças
que acabavam de ser possuídas

o Beco da Lua
era o nome escrito com letras exóticas
em uma placa iluminada
diferente do próprio lugar

o beco do mundo
em que cabiam
Terezas e Raimundos
Martas e Aparecidas
Antônios e Josés

eram a alma do beco
a música a lua o quintal
a terra a lama a chuva
as paixões os temporais

às vezes quando a lua
insistia em iluminar
viam-se rostos cansados e aflitos
olhos opacos e vazios
fantasmas pálidos passivos

era o beco maldito
da miséria e do pecado
da luxúria e do abrigo
dos sonhos e dos perdidos
dos gatos e dos vadios
dos poetas e dos mendigos
dos bêbados e dos drogados
dos felizes e dos atirados
dos doutores e dos iletrados
dos caçadores e dos bandidos
das mulheres sem seus homens
dos sedentos de carinho

era o beco do mundo
que sorria timidamente
para o outro lado da cidade
em busca de outros delírios
em busca de novos fantasmas

(um dia tive um bar, era o Beco da Lua)

segunda-feira, maio 30, 2005

Ano Novo

Nenhum segundo a mais
espero
para explodir
os dias que estão em mim.

último acalanto



a morte antes distante
conversa comigo como uma velha tia
me conforta nas noites de frio
como se fosse chama no calor
me faz arder suar
transforma o meu dia
incendeia as ruas em que passo

mesmo o sol forte
encobre-lhe a fria neblina
em diferentes sussurros
delírios, sonhos, poesia
entremeia-lhes sempre a morte

titubeio em cada palavra
com medo de que ela goste
e notando que não foge
chamo por seu nome

quando por um instante ela adormece
respiro livre mas a acordo
e a faço levantar
e lhe dou a foice

como se fosse a única companheira
como se fosse meu último acalanto

(poema antigo)

Voz

Ecoa em mim
a voz do meu coração
estranha voz
aguda e rouca
úmida e serena
voz de sonhar e gritar
todas as palavras
tudo que esteve contido
nas cavernas mais distantes
e silenciosas de mim.