A noite de Heitor
De
algum lado da cidade vinha um frio estranho para essa época do ano.
Heitor abriu a janela, a pequena janela do seu quarto fedido e imundo.
Colocou o rosto para fora e sentiu um vento meio de lado, que não
parecia pertencer àquele lugar. Olhou para cima, para baixo, para os
lados e viu que não tinha ninguém nas outras janelas, só ouviu um ruído,
quase como um sopro. Lembrou-se da noite que tinha tido com uma mulher.
Uma noite quente, extremamente, quente. Os lençóis estavam fora do
colchão, e havia restos de uísque nos copos, pontas de cigarro nos
cinzeiros e um cheiro de quase morte. No chão, além da calça jogada, um
batom sem a tampa, um papel de chocolate. Entrou no chuveiro e deixou
que a água quente inundasse seu corpo, sua alma. O vapor condensava-se
no espelho da pia. Heitor passou a toalha no espelho e o que viu o
assustou. Era um outro homem o que estava ali: mais velho, mais cansado,
mais triste. A última imagem que tinha de si não era essa. Pegou o
aparelho de barbear, ensaboou o rosto e fez a barba. Entrou debaixo do
chuveiro e ficou algum tempo se limpando com o sabonete de erva-doce que
alguém havia lhe dado. Enxugou-se com uma toalha limpa. Ao abrir a
porta da sala, notou um bilhete debaixo da porta. Era dela, de Valeska, a
mulher da noite. Uma lufada de ar gelado rompeu pela porta e o
envolveu. Ficou ali parado, olhando o vazio do corredor.
4 comentários:
Bom demais!!!
um instante, um átimo e de repente...
beijo
Adriana
a sua poesia é sempre cortante e tensa, mas a sua prosa é suave como uma pluma ao vento, que fluidez maravilhosa de narrativa; menina, a cada dia você me surpreende. Parabéns
Outro Heitor:
Heitor é mais um fodido daquela cidade de merdas, ele mora mal, se alimenta mal, come mal. Cada vez mais sozinho, cada vez mais mesquinho. Entregou-se à inércia que lhe imobiliza. Piora a cada dia, imagina cheiros, vozes, estalídos, passos, vive assombrado. Abre a janela às pressas mirando longamente o vazio do telhado do vizinho. Heitor se estranha ao espelho. Abre a torneira do chuveiro e fica perdido vendo a água despencar, aquele som a aturdi-lo, o vapor derretendo a sujeira das paredes e, sem lembrar se tomou banho ou não, se enxuga em um pano qualquer.
Noites atrás arranjou uma garrafa de um uisque vagabundo, despejou-o em dois copos que tomava alternadamente, desmaiou alccolizado, acordou num salto, correu abrindo a porta da sala e com olhar perdido no corredor estreito, bradou chacoalhando na mão a conta d'água que lhe enfiaram embaixo da porta:
- Valeska!!!!
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