ouvi os gritos de quem estava sendo engolido pela terra
e deles não tive pena
as casas continuavam brancas como fantasmas perdidos
e as crianças corriam loucas pelos passeios
uma mulher acabava de comer uma maçã vermelha e doce
e jogava as cascas para os pombos e abutres
uma velhinha empurrava com a bengala
as fezes dos pardais ensandecidos
o rio transbordava e jogava seus excrementos
contaminando o canal e as pessoas
um bando de velhos jogava cartas
nos bancos da praça abandonada
o poeta tentava achar a palavra que faltava
para completar seu poema de mil versos
os cães mastigavam uma carne transparente
não se sabia se era de gente ou de bicho
cavalos selvagens não corriam
apenas observavam o ritmo da natureza
a terra continuava a engolir os desvalidos e os afortunados
um homem lançava pedras no lago escuro
enquanto isso alguém tocava John Coltrane
e enfeitiçava a lua pálida
a terra parou e vomitou seus mistérios
e vomitou seus filhos seus bichos
sua decadência seus deuses sua arte
e finalmente adormeceu
(texto republicado)