sexta-feira, julho 31, 2009

nessa hora

rascunho aquarela/ rafael godoy

Nessa hora a chuva cai.
Não tenho planos, não penso o que vou fazer amanhã, muito menos daqui a alguns anos.
Meus filhos estão longe, a casa vazia.
Os gatos me olham e parecem dizer: será que ela não vai fazer nada? E ao mesmo tempo gostam da minha presença, aninham-se aos meus pés.
Não consigo procurar amigos e nem parentes. Nem fazer qualquer coisa para comer. Quando me dá fome, tomo um café que está ali, ao meu alcance e mastigo um pão de forma velho com manteiga.
A geladeira , como disse alguém, um deserto frio e árido. Não tem bebida, nem vinho, nem cerveja. O cigarro me acompanha em meus devaneios. Gosto de chegar na área e olhar a chuva.
Busco compreender algumas coisas em mim, mas isso também passa. Não estou alegre, nem triste, nem nada. O telefone toca e é uma promessa de encontro. Não quero também. Tenho que me vestir, me arrumar, sair de casa ou preparar a casa para alguém. Então dou uma desculpa qualquer e fujo de qualquer compromisso. Gosto da casa assim, com a cama desfeita, mas aconchegante, com algumas coisas fora do lugar, que fui eu que deixei. Os livros assim espalhados. Leio, mas não me prendo a nenhum. Um poema aqui, outro lá. Trechos de obras já lidas. Às vezes um livro inteiro em poucas horas. Mas é assim que gosto. Vejo tevê e procuro alguma coisa que preste. É difícil, mas consigo. Também, se quiser, mudo o canal a qualquer momento e brinco com as imagens. Ouço uma música que há muito não escuto e me surpreendo: como eu gostava daquela música! E acho uma merda. Durmo em alguns momentos e tenho sonhos estranhos, como ir ao fundo de uma piscina funda, muito funda, cheia de folhas e lama e conseguir voltar à superfície, ilesa. E quando volto à tevê, assisto a uma cena semelhante. Só que o cara não teve a mesma sorte. Afogou-se.
Tocam o interfone. Pode ser o gás, o correio, alguém pedindo alguma coisa, ou mesmo, um amigo. Mas não atendo. Não quero sair dessa inércia. Parece que a chuva parou. E eu parada aqui e os gatos me olham.

(republicado)

sábado, julho 25, 2009

filosofia barata


aquarela/rafael godoy

reverencio os mistérios
mas não os creio divinos

a dor e o sofrimento não são divinos
a humanidade feder e exalar horrores
a natureza gritar e transbordar
agonizar em febre e frio por causa do homem
também não

se deus fosse a natureza
não se chamaria flor a flor
nem bicho o bicho
nem mar o mar
nem homem o homem

há mistérios multitudinários
mas ninguém escolheu
comer o pão que o diabo amassou

ser miserável ter fome e desprezo
lutar em uma guerra inaceitável e desigual
morrer aos milhões por bala perdida ou canhão
à míngua ou solidão?

não me fale em livre arbítrio
a escolha não é essa
quem escolheu sofrer até a exaustão?

reverencio os mistérios
mas não me fale em deus

sexta-feira, julho 24, 2009

praga (ou poeminha safado)

estudo para aquarela/ rafel godoy

tolo é você que pensa que não é
você, você mesmo
com essa cara de safado
com esse ar de desgraçado
com esse cheiro de mulher

você que tinha os olhos cor da lua
que mexia em meus cabelos
me olhava com medo
e me fazia cafuné

cuspirei no seu sorriso
pisarei no seu calo
esmagarei o seu abraço

por onde passar
há de causar horror
um cheiro podre
exalará ad infinitum

e assim quando vier
maldito mal cheiroso mal vestido
encontrará a casa fechada
e qual fênix a sua mulher

segunda-feira, julho 20, 2009

rosas brancas


por uma dúzia de rosas brancas ela se jogou em frente à banca de flores e disse ter perdido o marido naquela tarde. suas lágrimas também brancas invadiram aquele espaço e o coração do florista. debruçou-se sobre o vaso e foi arrancando uma a uma as rosas postas em um belo arranjo. para cada rosa que tirava dava um suspiro e com a outra mão ia formando um novo buquê. assim que completou as doze rosas, ela olhou mais uma vez para o vendedor, completamente paralisado, comovido com sua dor. mandou-lhe um beijo soprado e logo alcançou a esquina sem pressa . em seu rosto, um sorriso de noiva abandonada no altar.

domingo, julho 19, 2009

baú

carlos gardel-imagem google

o que tirei do baú não eram mistérios
eram panos remendos algumas bijouterias
um urinol branco de ágata uma toalha de renda
um álbum antigo de pessoas desconhecidas
(mesmo que me reconhecesse em algumas fotografias)
um cheiro de poeira a tesourinha da minha avó
a seringa de prata do meu avô
um disco de carlos gardel e el dia que mi quieras
um vestido vermelho e o perfume de uma noite

tirei de lá algumas vidas adormecidas em lembranças
e as ressuscitei na sala de jantar
ficaram cochichando rindo dançando
e eu sussurrando medos

o que tirei do baú não eram mistérios
mas o fechei com força a sete chaves
e era hora do jantar

quinta-feira, julho 09, 2009

Tem poema meu hoje no poema dia. Beijos. Link ao lado.

terça-feira, julho 07, 2009

Atrasados


Estamos atrasados, meu amor
O rio já correu
O sol já se foi
e o dia ainda não foi embora

Perdemos a noite escura
mais negra que os olhos do diabo
Perdemos a hora de dançar com as árvores
com seus galhos como as mãos da morte

O vento está morno e fraco
As flores não têm cheiro
Perdemos o trem
que atravessa a cidade
Não vamos a lugar nenhum
O tempo já passou

Ficamos aqui de mãos dadas
Como duas crianças perdidas
As ruas são longas
e estreitas as esquinas

Estamos atrasados, meu amor
O mundo esmaga os nossos sonhos
lentamente, intensamente.