quarta-feira, abril 15, 2009

Eles

arlequim/estudo para aquarela/rafael godoy


No dia em que estava acorrentada
aos pés da mesa de meu pai
Vieram todos eles
De uma só vez e sussuraram maldições

Vieram todos de uma só vez
Nenhuma pena tiveram
Vociferavam palavrões
Diziam coisas impróprias
Não ligaram para os meus olhos
Não ligaram para meu choro mudo

Acorrentada ainda estava
E dançavam à minha volta
Mostravam seus corpos nus e retorcidos
E quase ingênuos e quase maus
Deliravam em seu êxtase

Falavam línguas estranhas
E exibiam sua enormes línguas
Viscosas e vermelhas
Às vezes as tocavam em mim
E eram quentes
E eram úmidas

Ainda acorrentada
Ainda atormentada
Vi pouco a pouco
Todos eles indo em direção à porta
Que estava entreaberta

E fugiam delicadamente
Saíam em harmonia
E eu ali acorrentada
E eu ali apavorada

E quando meu pai chegou
Abriu o cadeado
E me soltou das correntes
Perguntou:
"Está com fome, menina?"

Nenhum som saiu de minha garganta

Ele pegou o chicote
E me deu algumas chibatadas
E me disse: "Faço isso para o seu bem"

Respondi docilmente:
Sim, meu pai
E fiquei olhando aquela porta
Esperando que eles voltassem

E de novo meu pai saiu
E de novo me acorrentou
Mas nunca mais eles vieram
Nunca mais ouvi as suas línguas

Estava finalmente amaldiçoada
A solidão para sempre
Apenas um som
A voz de meu pai
Que perguntava sempre:

"Está com fome, menina?"

E eu disse naquele dia:
"Sim, meu pai"
Ele guardou o chicote
E vi em seus lábios
Um ligeiro sorriso

( texto escrito há mais tempo)

37 comentários:

Unknown disse...

Adriana, quantas imagens passadas voltaram à minha mente enquanto lia seu BELÍSSIMO poema!
É verdade que nossos pais a qualquer semblante estranho, a solução era o alimentado em contrapartid com o castigo.
"ELES" é impressionantemente belo!
Me marcou!

Parabéns!

Beijos

Mirse

Medeia disse...

muito bom...parabéns pelas belas palavras.
blogdomedeia.blogspot.com

Anita Mendes disse...

drika, nem sei o que dizer realmente...
eu creio que as vezes criamos os nossos próprios demónio como uma forma de justificar nossa culpa, aliás, eles estão sempre ao nosso redor ,mas quando há culpa é que o vemos.
ps: nosso pais sempre nos ensimam a domina- los.
um texto chocante e brilhante!
beijos pra ti, Anita.

Cadinho RoCo disse...

A opressão fere como chicote que rasga a carne e corrente que não permite ao barco navegar.
Cadinho RoCo

Texto-Al disse...

parece uma catarse este poema. mt bem conseguido. tem mta força.

bj

T.

Lou Vilela disse...

Profundo e contundente, como um fio de uma navalha.

Bjs,
Lou

obs.: Parabéns ao Rafael pelas belíssimas telas!

Beatriz disse...

Texto antigo? Atualíssimo. eles!
"Eu tô te explicando pra te confundir/te confundindo pra te esclarecer/tô iluminado pra poder cegar/ficando cego pra poder guiar". É Tom Zé.

Adriana Godoy disse...

Começando de baixo pra cima:

CD, tem a ver esses versos do Tom Zé.Bj

Lou, digo ao Rafa sua apreciação, obrigada pelo comentário. Bj

Tiago, é uma visão possível. Bj

Cadinho, valeram suas palavras, obrigada pela visita.Bj

Medéia, não sei por que vias veio até aqui, mas agradeço a visita. Volte sempre.

Anita, seus comentários sempre acertivos e gentis. Bj

Mirse, sua interpretação traduzida em palavras guardo com muito carinho. Obrigada mesmo. Bj

Guga Shultze disse...

Ei, Dri. Você é uma santa apocalíptica, uma profetisa das profundas, uma quiromante dos quintos dos infernos, todos os infernos e paraísos reunidos num só caldeirão sem fundo, ou algo assim. Esse poema do Eles é calafrio puro. Quem são eles? A gente pergunta mas, no fundo, a gente sabe a resposta (mas não pode dizer por que ela não sai da boca). Beijos pra você.

Luisa disse...

Dri, achei bom e forte. Transmite um clima pesado, pisado, pesadelo. A imagem fica na nossa cabeça. Mais que a imagem, o clima. Beijo.

pianistaboxeador21 disse...

Adriana foi uma leitura diferente pra mim a deste poema. Deixei-me levar pelas imagens eróticas, quase que perversas, não procurei encontrar uma lógica, ou a metáfora de algum dano psicólogico. Quer dizer, no começo, até que procurei, mas vi que a leitura assim me empobrecia enquanto leitor. Então fiz da outra maenira e gostei.
Acertou de novo, ou melhor, já tinha acertado antes, uma vez que o texto é mais antigo.

Beijos,

Daniel

Hercília Fernandes disse...

Adriana,

"à mesa, os fantasmas confabulam..."

Seu texto é forte e denso. Imagens interiores e interditos perpassam as linhas, mas acentuam a sua grande sensibilidade de materializar os conflitos humanos.

Mais um belo e profundo texto. Parabéns!

Beijos :)
H.F.

Rafael R. V. Silva. disse...

já disseram tudo!

essas pinturas do rafael (seu irmão? marido?) .rs.

que cantinho bom de estar e de te acompanhar.

beijão.

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Levantam-se os fantasmas do passado, é preciso levantar a cabeça e seguir em frente. Há correntes demasiado pesadas para ser esquecidas e é importante falar delas e seguir o caminho.

Beijinho amiga

guru martins disse...

...muuuuito doido!!
nem sei o que dizer,
alias, sei, mas não,
pois já acredito no
teu sentir...
se ajudar, meu bj

Rounds disse...

atordoante.

forte.

adriana, poeta de mão cheia.

bj

Ígor Andrade disse...

Um filme, na minha cabeça.
Abraço!

Renata de Aragão Lopes disse...

Sem palavras.
.............
.............
.............

Tania Anjos disse...

Olá!

Uau! Fiquei impressionada com seu texto.

A solidão é mesmo uma maldição e, a comida não mata a fome que ela provoca.

Intrigante o sorriso - sarcástico - do pai da menina...

Poema onírico muito bem elaborado e tocante.

Abraços,
Taninha

Luciano disse...

Uau, Drika. Que versos tão fortes e belos. Imagens fantásticas e fantasmagóricas tb.
Fiquei incomodado (no melhor dos sentidos) com as imagens que me foram criadas.
Obrigado por mais esse post.
Bj de arte querida.

Marcia Barbieri disse...

Belíssimo poema,imagens fortíssimas e estou amando as telas do Rafael.

beijos ternos

Adriana Godoy disse...

Uma palavrinha: o poema é ficcional, não há relação, ou quase nenhuma, com minha pessoa. Adriana

Adriana Godoy disse...

Márcia, agradeço pelo Rafa e por mim. Gosto muito de sua visita. Bj

Luciano, uau! Ainda bem que incomodou...Bj

Taninha, obrigada pela visita e por tão especial leitura.Bj

Renata, o silêncio diz muito. Obrigada. Bj

Luísa, bom demais sempre. Bj

Guga, você é o meu anjo poético e apocalíptico. Te amo pra sempre. Bj

Igor, obrigada. Bj

Buenas, valeu muito, beijo.

Guru, lindas, doidas e sensíveis palavras. Sempre ajudam. Beijo.

Gallobar, bom o seu retorno e boas suas palavras. Bj

Rafael, o Rafa é meu filho mais velho. Obrigada por sua visita encantadora. Bj

Hercília, belas palavras, você traz poesia em seus comentários. Obrigada. Bj

Daniel, gostei do modo como leu o poema. Dá uma outra dimensão. Mais uma vez, seu comentário acrescenta e me envaidece. Beijo.

Maria Clara disse...

Adriana,

seu texto é inquieto e inquietante, nos leva à reflexão dos conflitos e traumas humanos.

Muito bom, gostei!

Beijos,
Maria Clara.

JC disse...

Olá Adriana!
Belo o teu poema. Muito forte. Faz-nos transportar para muitos casos da vida real. Faz-nos reflectir sobre quantos casos haverá pelo mundo numa situação destas? A mensagem que passaste é forte mas real. O mundo não é feito apenas de coisas belas é, também, de crueldade.
Este poema precisava ser lido por tanta e tanta gente para reflectir sobre os maus tratos que dão aos filhos. Filhos que não pediram para nascer. Mas que os pais quiseram que viessem ao mundo. Como tal deviam dar-lhes o melhor que o mundo tem. Amor.
Beijinhos

nina rizzi disse...

bom :) e me faz pensar em "carta ao pai" e em meu luxo e halitose.

Anônimo disse...

prazer em ler, em conhecer. beijos.

Tomaz disse...

Encarei como uma metáfora este ótimo poema... Vejo um mundo nu e maldito e nós, acorrentados... e a imagem do pai apenas pergunta: " está com fome ? " E nem sempre é a fome que atormenta uma criança...

Bom, assim viajei hehee
Beijão.

Adriana Godoy disse...

Tomaz, interessante a sua leitura. É bom ver novas formas de interpretação. Obrigada. Bj

souza-ribeiro, volte sempre.

Nina, será? Bj

JC, bonito o seu comentário. Obrigada. Bj

Vinícius Paes disse...

Fico feliz a cada texto que leio por aqui, belíssimos. Este enigmático, calafrios.

beijo.

Luciano Fraga disse...

Querida poeta, estou com problemas no computador,pesquei aqui rápidamente, olhei para um lado, para o outro e não resistir em comentar um texto tão perturbador, atordoante, com tantas imagens alucinógenas(no melhor de todos os sentidos."Você tem fome de que?".Mravilhosamente belo, beijo.

Anônimo disse...

Sei lá, acho que estou tonta e releio isso como um reviver, sei lá, é forte e estou adorando as telas do Rafa, mas gosto mais do que você escreve, sempre apesar de não ter dado palpites ultimamente...Me desculpe, acho que optei pela minha anulação, mas...continuo achando demais o que você nos mostra aqui...Beijos, sua primelha

Adriana Godoy disse...

Valeu, Andy, adoro suas visitas. Beijo.

Assis de Mello disse...

Dilacerante.
Bergman se virou no caixão de vontade de filmar esse poema.
Vou reler.
Parabéns, Adriana

laerth motta disse...

sem dúvida esse é magistral

Priscila Lopes disse...

Nossa, um poema como este habita em um Grito.

BAR DO BARDO disse...

poema que chamo de passagem, pasagem para a vida "adulta"...

os psicanalistas devem adorar esse texto. sério!

beijo!

- henrique pimenta