Chegava em casa louco para encontrar o sofá e ver televisão. Quando o sol se ia e a noite ainda não havia chegado, lhe dava uma angústia de morte. Seu peito apertava, vinha uma tristeza esquisita, uma escuridão que invadia seu corpo , sua mente e todos os seus sentidos. Eram alguns minutos que viravam treva infinita. Então, ligava a tevê e era como se iluminasse aos poucos; seus pensamentos tomando outro rumo.
Trabalhava o suficiente apenas para se manter e manter o pequeno apartamento. Conservava-o sempre limpo. Não queria nenhum inseto asqueroso a lhe perturbar a noite, a correr por entre os lençóis.Sabia de sua inutilidade. Não queria nenhuma ascensão no emprego. Não se engajava em nenhuma causa social, em movimento político, ecológico, cristão, muçulmano, libertário, vegetariano, zen.
Encontrava-se com a família apenas em ocasiões especiais, como festas de aniversário, casamentos ou velórios. Não queria que pensassem que era louco ou solitário. Já havia abandonado os amigos há algum tempo. Ou eles o abandonaram.
O que gostava mesmo, de uma maneira intensa, era assistir à tevê. Um prazer duvidoso, contudo, mágico. Chegava do trabalho, comia alguma coisa já pronta, vestia sua camiseta rasgada , sua bermuda velha de malha e deitava-se no sofá.
Pegava o controle e percorria com os dedos ágeis os mais diversos canais que a tevê a cabo lhe oferecia. Detinha-se em algum filme, documentário ou qualquer programa que lhe chamasse a atenção. Não tinha mais telefone fixo em casa para não ser incomodado. O celular no silencioso era atendido só em caso de emergência.
Gostava de mulheres, mas não as queria em sua cama ou compartilhando o controle de sua tevê. Isso era inconcebível. Quando seu corpo clamava por sexo, saía e procurava alguma mulher, pagava e se sentia satisfeito. Muitas vezes se fazia carícias, olhando as mulheres nuas que passeavam na tela, contorcendo-se sozinho em seu sofá, soltando gritos roucos e correndo para se lavar no banheiro com cheiro de lavanda.
Uma vez, apaixonou-se por uma prostituta e se encontrava com ela todas as noites e por um tempo esqueceu-se da tela brilhante. Mas, por uma tragédia do destino, ela se atirou do décimo andar de um prédio de luxo. Ninguém nunca soube o que fazia lá ou o motivo de tal atitude.
Um dia faltou ao trabalho, no dia seguinte também, uma semana e mais outra. Nem o porteiro o viu saindo de casa, e os entregadores dos deliveres não apareciam mais. Ligaram para o seu celular, sempre fora de área. Deixaram mensagens. Tocaram o interfone. Arrombaram a porta. Foi assim que entraram e com olhos assustados viram uma luz azul que saía da tevê, um corpo imóvel nu no centro da sala, totalmente iluminado.
19 comentários:
"... contorcendo-se sozinho em seu sofá, soltando gritos roucos e correndo para se lavar no banheiro com cheiro de lavanda."
lavanda :o aroma que lava todos os nossos pecados. perfeito!
Drika, que gostoso ler suas prosas poéticas, goste demais!
Minha leitura: o caboclo atingiu o nirvana.
(Excelente texto... )
Assinando o que o Bardo escreveu.
Ótima a tua narrativa Drika.
Bj carinhoso. Sempre bom passar por aqui.
Bardo, sua leitura, pode estar certa.
Luciano, obrigada pelo carinho.
Anita, valeu!!
Preciso sair e resolver algumas coisas agora, Adriana, mas volto pra ler com muita atenção e comentar com calma e carinho.
Beijo.
Daniel
a artificialidade da luz e a realidade do corpo,
excelente texto!
Narrativa primorosa. Suspense que se cria na "treva infinita".
Essa personagem porta traços de solidão urbana, melancolia e silêncios plenos de furor. Além disso, lembrou o Ermitão , de Marcos Pontes.
http://contosdeum.blogspot.com
As narrativas de ambos conversam.
Gostei muito, Adriana.
"O meu vizinho do lado se matou de solidão, abriu o gás, o coitado, o último gás do fogão...". me lembrou o "Alfredo, mas ninguém sabe do quê", do Vinícius de Moraes.
as avessas
Obrigado por tuas visitas. Grande abraço.
Demorou, mas voltei. Excelente texto. Quantas vezes a gente se pega com vontade de viver assim nénão? às vezes a gente não foge com a tv, mas com os livros ou as canções. De qualquer forma, não deixa de ser uma fuga. Gostei da prostituta suicida tb, me lembrou um quandro da frida kahlo.
Espero que tenha sido um bom carnaval.
Me dá teu endereço pra eu te mandar meu romancezinho, se vc quiser é claro.
Abração,
Daniel
E ele se libertou em frente a tevê.
Que maravilha é esse texto. Esse personagem me fascina. Excelente.
bj
estou com o Bardo.:)
Lindo esse conto!
Horror, Sexo e alienação. O motivo que levou o protagonista a morrer nu em frente a uma televisão,e o estilo de vida que ele levava, é repetido pelas pessoas "comuns" em nosso cotidiano, o que leva a algo real e intenso, mostrando o lado negro da vida moderna de um cidadão trabalhador "normal" , que chega do trabalho cansado, come liga a TV... Ressaltando o estilo de vida consumista(até as mulheres são produto).Podendo levar ao surto o mais bem intencionado ser humano.
Parabéns.
Beijos.
Grande narrativa e um final surpreendente.O fruto, ou o produto de certas escolhas?Ainda bem que atingiu o Nirvana(acho) e tudo acabou em luz.Muito boa tua escrita, abraço.
Ótimo conto, Adriana.
Tenho um parecido, publicado no "Melhor que a encomenda" no qual o cara se isola do mundo por conta da internet. Uma hora dessas publico no blog.
Beijos
Que delícia de texto, Dri. Adorei o corpo dele iluminado pela tv. A "VOZ" já é parceira do Projeto Eutanásia, você já é leitora, que tal agora ser cúmplice?
Beijos, alegrias e poesias,
Buda.
Que delícia de texto, Dri. Adorei o corpo dele iluminado pela tv. A "VOZ" já é parceira do Projeto Eutanásia, você já é leitora, que tal agora ser cúmplice?
Beijos, alegrias e poesias,
Buda.
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