terça-feira, outubro 30, 2012

você acorda e pensa num modo mais fácil de não pensar que o dia poderá ser uma merda. você acorda e não quer esse calor invadindo o seu corpo nem esse sol feio nesse céu indefinido de quase chuva. olha pro lado, faz um café, dá uma ajeitada na casa, põe água e comida pros gatos, come uma fruta. fuma o primeiro cigarro. ouve a primeira música. liga o computador e não tem nada de muito novo. quando percebe, tá na hora do almoço e nenhuma fome, mas você tem que comer. você tem que sair e fazer as coisas na rua. tem que trabalhar, fazer sacolão, conversar um pouco com o vizinho. tem que saber da mãe, dos irmãos, dos filhos. tem que se inteirar das notícias do mundo e pensar que o mundo é isso. não se incomodar com o furacão na américa, com o ódio da mídia conservadora nem com o assalto que acabou de acontecer na esquina. tem que esquecer da briga com sua amiga, da desesperança na educação, da noite que escapou por entre os dedos. você olha e vê a vida quase como uma repetição. você pensa e quase não vê sentido nessa coisa toda. aí, de repente, pensa nos amigos distantes, na cerveja gelada, naquele dia na praia, lê alguns versos de seu poeta preferido, vê aquela planta na área que cresceu muito da noite pro dia e o seu gato esticado com a barriga pra cima tentando driblar o calor. lembra dos filhos e de como são bons e bonitos. você entra no banho e a água e o sabonete parecem limpar sua alma. o dia pode não ser mais uma merda.

quarta-feira, outubro 24, 2012

o ar frio que entrava pela janela





arte: rafael godoy


mais de uma vez ele me disse
que havia solução
que nem tudo estava perdido

mais de uma vez ele apagou a luz ao sair
me deixou na escuridão do quarto
e pôs Milles Davis para tocar

mais de uma vez ele me cobriu com o edredon
colocou a mão na minha testa
para ver se eu estava com febre

mais de uma vez me beijou com olhos selvagens
me chamou de vadia de louca de perdida
e deliramos juntos no deserto de nossa cama

mais de uma vez ele chorou
olhando as estrelas

mais de uma vez jurei mudar

era só uma questão de tempo

mas depois de mil e uma noites
depois de apagar a luz do quarto
ele se foi

ficaram as estrelas
ficou a noite
e o ar frio que entrava pela janela

(republicado)

sexta-feira, outubro 19, 2012

constatação 2



arte: rafael godoy

queria não ter esses olhos  nem essa  pele
e nem essa alma perdida que se comove com o mundo

terça-feira, outubro 16, 2012

parece que vem uma dor lá no fundo. como se nem a melhor música ou o melhor amigo pudessem te salvar. como se nem o dia que amanheceu bonito representasse alguma coisa. é como olhar o deserto árido e sem cor. é como acender um cigarro depois do café e não sentir o prazer de inalar a fumaça do veneno. é como tomar uma cerveja gelada no fim da tarde e ela descer amarga como o pior remédio. minha mãe tá morrendo há quase dois anos e eu não posso fazer nada. minha mãe tá morrendo na cama paralisada e eu não posso fazer nada. nem os seus olhos brilham mais. nem o sorriso lindo na sua boca. nem o seu perfume. nem nada. só a dor que vem do fundo. só a dor na alma. minha mãe tá morrendo e eu morrendo um pouco com ela.