sábado, março 28, 2009

o ar frio que entrava pela janela

estudo de aquarela/ Rafael Godoy

mais de uma vez ele me disse
que havia solução
que nem tudo estava perdido

mais de uma vez apagou a luz ao sair
me deixou na escuridão do quarto
e pôs Milles Davis para tocar

mais de uma vez me cobriu com o edredon
colocou a mão na minha testa
para ver se eu estava com febre

mais de uma vez me beijou com olhos selvagens
me chamou de vadia de louca de perdida
e deliramos juntos no deserto de nossa cama

mais de uma vez ele chorou
olhando as estrelas

mais de uma vez jurei mudar
era só uma questão de tempo

mas depois de mil e uma noites
depois de apagar a luz do quarto
ele se foi

eu fiquei

e ficou a noite a música
e o ar frio que entrava pela janela

sábado, março 21, 2009

o que vou deixar para os meus filhos?

série cenas de infância /ferrari

o que vou deixar para meus filhos?
há mães que deixam fotos organizadas em álbuns.
há mães que deixam uma conta na poupança para o futuro deles.
há mães que dão exemplo de uma vida serena e comportada.

o que vou deixar para os meus filhos?
algumas fotos coladas sem ordem , alguns cedês,
algumas histórias esquisitas, tristes ou engraçadas,
alguns livros que provavelmente não vão ler,
uma infância linda em um tempo de quintais,
alguma tristeza de não os ter amado como precisavam.

o que vou deixar para meus filhos?
um olhar que está nos olhos deles,
um jeito tímido de sorrir,
uma foto minha na parede,
e a certeza de que são a melhor coisa que deixei.

domingo, março 15, 2009

cenas de rua


no vago tom da noite
a árvore parada e morna
com seus galhos feito mãos inúteis
assombram os que passam incautos
o passeio é um deserto esticado
e a rua com asfalto recente geme
quando carros deslizam loucamente
com suas buzinas ensurdecedoras

do outro lado da rua
um homem fuma solitariamente
não sorri, apenas olha a fumaça que sobe
a moça passa: tem fogo?
nesse momento o seu corpo é uma fogueira
a moça mostra o cigarro apagado e ergue a mão
tem fogo?- repete
ele todo é uma fogueira
a moça sorri com o cigarro apagado
o homem arde e olha a fumaça que sobe
a moça já virou a esquina

um cão atravessa a rua
as pessoas dormem com janelas fechadas
a luz vermelha e azul do carro de polícia
a sirene que berra
uma lua pálida no céu
a figura de um homem com um cigarro aceso entre os dedos
é vista virando a esquina

terça-feira, março 10, 2009

terra minha



trago em mim o cheiro de minha terra
ruas cinzentas e sujas me atravessam
montanhas cercam a cidade
e me prendem em seu mistério

minha pele impregnada da noite
iluminada por neons lua e asfalto quente
carros trafegam em meus sonhos
e as buzinas estão bem embaixo
da janela aberta timidamente

as esquinas invocam os bares
que sempre estão dentro de mim
nas veias dilatadas e poéticas

a cidade chama e eu atendo
senhora e escrava
de suas entranhas corrompidas

e mesmo em além-mar ou em terras geladas
e nos mais distantes horizontes
trago em mim o seu gosto e sua infância