sexta-feira, maio 29, 2009

irreversível

não tire de mim o encanto desse dia
ainda que seus olhos me implorem
e seu corpo se ausente
as lembranças são minhas
e você não pode fazer mais nada
quando a noite me engolir de vez
é esse dia que lembrarei
e você não pode fazer mais nada
mais nada

(imagem do filme: o homem que não estava lá
/
renè magritte)

terça-feira, maio 26, 2009

poema lá

Oi, amigos, queridíssimos poetas e eventuais leitores, tem um poema meu inédito no blog do poeta Luciano Fraga. Quem quiser, dê uma espiada. Beijos.

http://versoseperversos.blogspot.com/

sábado, maio 23, 2009

cenas da terra

paisagem/estudo para aquarela/ rafael godoy

(para Henrique Bardo Pimenta)

ouvi os gritos de quem estava sendo engolido pela terra
e deles não tive pena

as casas continuavam brancas como fantasmas perdidos
e as crianças corriam loucas pelos passeios

uma mulher acabava de comer uma maçã vermelha e doce
e jogava as cascas para os pombos e abutres

uma velhinha empurrava com a bengala
as fezes dos pardais ensandecidos

o rio transbordava e jogava seus excrementos
contaminando o canal e as pessoas

um bando de velhos jogava cartas
nos bancos da praça abandonada

o poeta tentava achar a palavra que faltava
para completar seu poema de mil versos

os cães mastigavam uma carne transparente
não se sabia se era de gente ou de bicho

cavalos selvagens não corriam
apenas observavam o ritmo da natureza

a terra continuava a engolir os desvalidos e os afortunados
um homem lançava pedras no lago escuro

enquanto isso alguém tocava John Coltrane
e enfeitiçava a lua pálida

a terra parou e vomitou seus mistérios
e vomitou seus filhos seus bichos
sua decadência seus deuses e sua arte

e finalmente adormeceu

quando a escuridão


desenho de carlos carah/sangue ruim


quando a escuridão parece mais escura que é
você está no meio do mar em um pequeno bote
vê uma mancha preta maior que a escuridão
pensa que não haverá mais jeito

então olha para cima e não vê estrelas
as águas são geladas e escuras
você ali no pequeno bote

no meio daquele oceano imenso e gelado
aparecem uns olhos esverdeados

você ali naquelas águas e aqueles olhos
você se agarra a eles a seu brilho
você acorda em sua cama e uns olhos verdes escuros
mais escuros que aquelas águas te olham

então você dorme e por uns momentos sonha

( poema originariamente publicado no blog versos e perversos de Luciano Fraga)

terça-feira, maio 19, 2009

três cachorros



três cachorros soltos nas ruas
dizem que um virou lobo
se confundiu com a noite
dizem que um virou gente
se deitou com cadela
dizem que um um virou eterno
no coração da menina

(republicado)




(imagem do google)


quinta-feira, maio 14, 2009

Benedita

aquarela/rafael godoy

a Daniel Lopes


quando Benedita me disse que já era noite
não acreditei
porque em seus olhos brilhavam dois sóis
e o chá que ela me trazia
tinha o aroma da minha infância
então quis pular da cama
mas suas mãos negras e quentes
me seguravam
e sua voz dizia para eu dormir

depois de noites acordada
ruminando sonhos destoantes
deitei a cabeça em seu colo
e pude dormir como dormia nos braços de minha vó

Benedita cantou canções e dormiu com meus sonhos
a noite ficou doce e suave
e tinha gosto de quintal e de manga caída do pé

sábado, maio 09, 2009

mais um susto

Oi, amigos, passei por mais um susto. Tive que ser internada de novo com urgência, pois estava com peritonite aguda. Passei mais quatro dias no hospital, fui submetida a uma punção, uma das coisas mais dolorosas por que já passei e agora estou em casa. Ainda estou tomando remédios fortes pra dor à base de morfina e antibiótico. Já me sinto melhor e em breve volto pra sair desse clima horror/hospital. Tô meio grogue ainda, mas jájá volto aos blogs de meus queridos amigos e poetas. Obrigada mais uma vez pelo carinho e atenção. Meu sangue ainda pulsa nas veias. Beijos.

sexta-feira, maio 01, 2009

estranhamente








tutuco chiquinha

Estranhamente veio a dor aguda como faca quente cortando a carne e o coração que não estava no lugar certo, pelo menos naquela hora.

Cheguei ao espaço branco com lâmpadas azuladas e brancas com gente espalhada por todos os lados e tinham alguns que usavam máscaras e aparelhos gelados pendurados no pescoço. E então eles me furaram várias vezes, mil vezes e tiraram chapa e olhavam dentro do corpo com gel gelado e como espectros dançavam dentro de mim.

Vi seres pálidos e doloridos e eu era um deles. Injetaram líquidos esverdeados e ardentes. Me sedaram e me furavam de novo só que desta vez eu dormia e fui abduzida e submetida a experiências estranhas. Tiraram de mim uma pedra que talvez tivesse vindo da lua e tiraram pedaços do meu corpo e me injetaram drogas para acabar com os seres microscópicos que infestavam meu sangue.

E vieram muitos amigos e muitos da família e alguns desconhecidos. Olhavam pra mim e eu via nos seus olhos a minha doença . Via em seus olhos que a minha vida estava escorrendo em minha cara branca e no soro pendurado em meu braço, em minha veia.

A dor vai indo e me levando para outros caminhos. Meus dois gatos me olham e sentem um cheiro diferente, mas deitam sobre os meus pés frios e o mundo fica mais aconchegante.

convalescendo

Acabo de voltar do hospital LifeCenter onde fiquei internada por uma semana. Tive infecção aguda e pedra na vesícula . Tiraram a pedra, tiraram a vesícula, tiraram a infecção e tiraram a minha alegria por um tempo. Aos poucos vou me atualizando com os blogs de meus amigos, mas por enquanto ainda me sinto um pouco fraca. Obrigada pelas visitas e preocupação. Beijos.

sexta-feira, abril 24, 2009

hercília fez...

Gente, tem um poema que a Hercília fez pra mim no blog dela. Vale a pena. Recomendo, narcisismo à parte. Beijos.

http://fernandeshercilia.blogspot.com/

sábado, abril 18, 2009

manhã

duas portas fechadas
para um corredor que dá para o mundo
foi o que vi ao acordar de manhã
foi o que me fez querer sair de casa
abrir a porta da rua
e sentir o ar quente da cidade

quarta-feira, abril 15, 2009

Eles

arlequim/estudo para aquarela/rafael godoy


No dia em que estava acorrentada
aos pés da mesa de meu pai
Vieram todos eles
De uma só vez e sussuraram maldições

Vieram todos de uma só vez
Nenhuma pena tiveram
Vociferavam palavrões
Diziam coisas impróprias
Não ligaram para os meus olhos
Não ligaram para meu choro mudo

Acorrentada ainda estava
E dançavam à minha volta
Mostravam seus corpos nus e retorcidos
E quase ingênuos e quase maus
Deliravam em seu êxtase

Falavam línguas estranhas
E exibiam sua enormes línguas
Viscosas e vermelhas
Às vezes as tocavam em mim
E eram quentes
E eram úmidas

Ainda acorrentada
Ainda atormentada
Vi pouco a pouco
Todos eles indo em direção à porta
Que estava entreaberta

E fugiam delicadamente
Saíam em harmonia
E eu ali acorrentada
E eu ali apavorada

E quando meu pai chegou
Abriu o cadeado
E me soltou das correntes
Perguntou:
"Está com fome, menina?"

Nenhum som saiu de minha garganta

Ele pegou o chicote
E me deu algumas chibatadas
E me disse: "Faço isso para o seu bem"

Respondi docilmente:
Sim, meu pai
E fiquei olhando aquela porta
Esperando que eles voltassem

E de novo meu pai saiu
E de novo me acorrentou
Mas nunca mais eles vieram
Nunca mais ouvi as suas línguas

Estava finalmente amaldiçoada
A solidão para sempre
Apenas um som
A voz de meu pai
Que perguntava sempre:

"Está com fome, menina?"

E eu disse naquele dia:
"Sim, meu pai"
Ele guardou o chicote
E vi em seus lábios
Um ligeiro sorriso

( texto escrito há mais tempo)

sexta-feira, abril 10, 2009

devaneios quase apocalípticos

escuro/estudo para aquarela/rafael godoy

Descartes descartou as curvas
Maquiavel nem tão maquiavélico era
Sócrates bebeu do pŕoprio veneno
Platão eternizou-se nas cavernas

Pilatos ensaboou as mãos
A Aristóteles deixou as moedas
Pedro negou-se três vezes
Judas se perdeu nos confins do mundo

Beethoveen chegou à perfeição
Nero incendiou tudo
Lúcifer desceu à terra
Deus abandonou a criação

Dante, inferi que o inferno é aqui

Chamas ardem por todos os lugares
Chamo alguém clamo berro
Os edifícios sumiram das cidades

Nunca mais a lua!
Nunca mais a lua...
A lua nunca mais

domingo, abril 05, 2009

fim de tarde

É claro que não foi do jeito que eu imaginava. Nem podia ser. Aquela hora em que as pessoas passam voltando para casa, a cidade gemendo buzinas e sirenes, a correria louca desatinada e ele ali , sentado , tomando um café e pensando no que vai me dizer. Então chego e trago um sorriso meio tímido, meio assustado. Ele acende um cigarro e joga a fumaça para o ar e me pergunta o que fazer. Falo sobre o trânsito, da casa velha que ficava perto do Arrudas e de contas a pagar.-Você já viu aquele filme? Ele responde que não e sussurra uma melodia dos Beatles: "I'm so tired".... Pergunto o que almoçou hoje e ele me ignora. Raspa a garganta e acende outro cigarro. Disparo na fala, insinuo ciúmes, imito a cena de um filme que vi algum dia. Peço um uísque com gelo. Ele diz que bebo demais, que é cedo pra começar. Não retruco, concordo em silêncio. Ele também pede um, sem gelo. Pego um embrulho, guardado na bolsa e entrego pra ele. Ele me olha com os olhos molhados e escuros como a noite que chega. Não consigo ficar parada e peço mais um uísque, vou ao banheiro, molho o rosto na água fria, as lágrimas são quentes . Percebo quando estou voltando que a mesa está vazia. Tem um guardanapo e um trecho de " I"m so tired" , escrito com tinta azul: " I wonder should I get up and fix myself a drink?" Ele volta. O copo na mão. "I'd give you everything I've got for a little peace of mind". Vamos de mãos dadas para casa.

(texto escrito há mais tempo)

quarta-feira, abril 01, 2009

expurgo

entre bruxos e velas
vomito veneno e vísceras
ensandecida e crédula
no meu último ato místico
e me salvo sem pudor
de seus pecados

estudo para tela/rafaelgodoy

sábado, março 28, 2009

o ar frio que entrava pela janela

estudo de aquarela/ Rafael Godoy

mais de uma vez ele me disse
que havia solução
que nem tudo estava perdido

mais de uma vez apagou a luz ao sair
me deixou na escuridão do quarto
e pôs Milles Davis para tocar

mais de uma vez me cobriu com o edredon
colocou a mão na minha testa
para ver se eu estava com febre

mais de uma vez me beijou com olhos selvagens
me chamou de vadia de louca de perdida
e deliramos juntos no deserto de nossa cama

mais de uma vez ele chorou
olhando as estrelas

mais de uma vez jurei mudar
era só uma questão de tempo

mas depois de mil e uma noites
depois de apagar a luz do quarto
ele se foi

eu fiquei

e ficou a noite a música
e o ar frio que entrava pela janela

sábado, março 21, 2009

o que vou deixar para os meus filhos?

série cenas de infância /ferrari

o que vou deixar para meus filhos?
há mães que deixam fotos organizadas em álbuns.
há mães que deixam uma conta na poupança para o futuro deles.
há mães que dão exemplo de uma vida serena e comportada.

o que vou deixar para os meus filhos?
algumas fotos coladas sem ordem , alguns cedês,
algumas histórias esquisitas, tristes ou engraçadas,
alguns livros que provavelmente não vão ler,
uma infância linda em um tempo de quintais,
alguma tristeza de não os ter amado como precisavam.

o que vou deixar para meus filhos?
um olhar que está nos olhos deles,
um jeito tímido de sorrir,
uma foto minha na parede,
e a certeza de que são a melhor coisa que deixei.

domingo, março 15, 2009

cenas de rua


no vago tom da noite
a árvore parada e morna
com seus galhos feito mãos inúteis
assombram os que passam incautos
o passeio é um deserto esticado
e a rua com asfalto recente geme
quando carros deslizam loucamente
com suas buzinas ensurdecedoras

do outro lado da rua
um homem fuma solitariamente
não sorri, apenas olha a fumaça que sobe
a moça passa: tem fogo?
nesse momento o seu corpo é uma fogueira
a moça mostra o cigarro apagado e ergue a mão
tem fogo?- repete
ele todo é uma fogueira
a moça sorri com o cigarro apagado
o homem arde e olha a fumaça que sobe
a moça já virou a esquina

um cão atravessa a rua
as pessoas dormem com janelas fechadas
a luz vermelha e azul do carro de polícia
a sirene que berra
uma lua pálida no céu
a figura de um homem com um cigarro aceso entre os dedos
é vista virando a esquina

terça-feira, março 10, 2009

terra minha



trago em mim o cheiro de minha terra
ruas cinzentas e sujas me atravessam
montanhas cercam a cidade
e me prendem em seu mistério

minha pele impregnada da noite
iluminada por neons lua e asfalto quente
carros trafegam em meus sonhos
e as buzinas estão bem embaixo
da janela aberta timidamente

as esquinas invocam os bares
que sempre estão dentro de mim
nas veias dilatadas e poéticas

a cidade chama e eu atendo
senhora e escrava
de suas entranhas corrompidas

e mesmo em além-mar ou em terras geladas
e nos mais distantes horizontes
trago em mim o seu gosto e sua infância

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

irreversível

não tire de mim o encanto desse dia
ainda que seus olhos me implorem
e seu corpo se ausente
as lembranças são minhas

e você não pode fazer mais nada
quando a noite me engolir de vez
é esse dia que lembrarei
e você não pode fazer mais nada
não pode fazer mais nada...

(imagem do filme :o homem que não estava lá)

quando acordei



peguei a noite com as mãos
de manhã
meus olhos eram duas estrelas




Noite Estrelada/Van Gogh/1889

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Iluminado

Chegava em casa louco para encontrar o sofá e ver televisão. Quando o sol se ia e a noite ainda não havia chegado, lhe dava uma angústia de morte. Seu peito apertava, vinha uma tristeza esquisita, uma escuridão que invadia seu corpo , sua mente e todos os seus sentidos. Eram alguns minutos que viravam treva infinita. Então, ligava a tevê e era como se iluminasse aos poucos; seus pensamentos tomando outro rumo.

Trabalhava o suficiente apenas para se manter e manter o pequeno apartamento. Conservava-o sempre limpo. Não queria nenhum inseto asqueroso a lhe perturbar a noite, a correr por entre os lençóis.

Sabia de sua inutilidade. Não queria nenhuma ascensão no emprego. Não se engajava em nenhuma causa social, em movimento político, ecológico, cristão, muçulmano, libertário, vegetariano, zen.

Encontrava-se com a família apenas em ocasiões especiais, como festas de aniversário, casamentos ou velórios. Não queria que pensassem que era louco ou solitário. Já havia abandonado os amigos há algum tempo. Ou eles o abandonaram.

O que gostava mesmo, de uma maneira intensa, era assistir à
tevê. Um prazer duvidoso, contudo, mágico. Chegava do trabalho, comia alguma coisa já pronta, vestia sua camiseta rasgada , sua bermuda velha de malha e deitava-se no sofá.
Pegava o controle e percorria com os dedos ágeis os mais diversos canais que a tevê a cabo lhe oferecia. Detinha-se em algum filme, documentário ou qualquer programa que lhe chamasse a atenção. Não tinha mais telefone fixo em casa para não ser incomodado. O celular no silencioso era atendido só em caso de emergência.

Gostava de mulheres, mas não as queria em sua cama ou compartilhando o controle de sua tevê. Isso era inconcebível. Quando seu corpo clamava por sexo, saía e procurava alguma mulher, pagava e se sentia satisfeito. Muitas vezes se fazia carícias, olhando as mulheres nuas que passeavam na tela, contorcendo-se sozinho em seu sofá, soltando gritos roucos e correndo para se lavar no banheiro com cheiro de lavanda.

Uma vez, apaixonou-se por uma prostituta e se encontrava com ela todas as noites e por um tempo esqueceu-se da tela brilhante. Mas, por uma tragédia do destino, ela se atirou do décimo andar de um prédio de luxo. Ninguém nunca soube o que fazia lá ou o motivo de tal atitude.

Um dia faltou ao trabalho, no dia seguinte também, uma semana e mais outra. Nem o porteiro o viu saindo de casa, e os entregadores dos deliveres não apareciam mais. Ligaram para o seu celular, sempre fora de área. Deixaram mensagens. Tocaram o interfone. Arrombaram a porta. Foi assim que entraram e com olhos assustados viram uma luz azul que saía da tevê, um corpo imóvel nu no centro da sala, totalmente iluminado.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Beco da Lua

um dia senti que aquele era o lugar
um beco com casas velhas e malcheirosas
que abria o seu sorriso para o mundo
um beco cujo cheiro de café
misturava-se ao cheiro das moças
que acabavam de ser possuídas

o Beco da Lua
era o nome escrito com letras exóticas
em uma placa iluminada
diferente do próprio lugar

o beco do mundo
em que cabiam
Terezas e Raimundos
Martas e Aparecidas
Antônios e Josés

eram a alma do beco
a música a lua o quintal
a terra a lama a chuva
as paixões os temporais

às vezes quando a lua
insistia em iluminar
viam-se rostos cansados e aflitos
olhos opacos e vazios
fantasmas pálidos e passivos

era o beco maldito
da miséria e do pecado
da luxúria e do abrigo
dos sonhos e dos perdidos
dos gatos e dos vadios
dos poetas e dos mendigos
dos bêbados e dos drogados
dos felizes e dos atirados
dos doutores e dos iletrados
dos caçadores e dos bandidos
das mulheres sem seus homens
dos sedentos de carinho

era o beco da lua
que sorria timidamente
para o outro lado da cidade
em busca de outros delírios
em busca de novos fantasmas



(Um dia tive um bar, era o Beco da Lua,
numa tarde chuvosa destruíram o beco e construíram um edifício de luxo no lugar.Dizem que até hoje muitos fantasmas da cidade rondam por ali procurando um abrigo)

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

era primavera



o último urso branco saiu do estado hibernal
e caminhou lentamente na árida e fria paisagem

abriu seus braços enormes
resmungou sonetos ancestrais
abraçou-se à própria sorte

escancarou seus dentes afiados inúteis
abriu caminhos tortuosos insólitos
mergulhou no lago negro gelado

não viu rastros de homens
nem peixes nem focas nem canibais
viu algas mortas pardos areais

o último urso branco hibernou
e era primavera
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Um poema feito por Henrique Pimenta, a a partir da leitura do meu e que me deixa muito feliz.

Um ursinho para Adriana Godoy

Desde já peço desculpas a você, Adriana Godoy. Eu queria fazer um texto que dialogasse com o seu texto "era primavera", que trialogasse com a foto do mamífero weird, mas troquei as patas pelas mãos e deu no que deu. Entanto, fiz. Tomara que você encontre algo que lhe seja próprio, além da inspiração promovida à picolé de pimenta.



Ursinho


Solar por sobre a neve, meu ursinho,

Sozinho sobre a cama de uma alvura...

De um polo ao outro polo o coitadinho,

Em busca de uma foca, na fissura...


A bicha bem na frente, com carinho,

Se faça de acepipe e, sem tristura,

Banquete para a fera à mesa em linho,

Servir-se de repasto de gordura.


Pelúcia, ai que delícia de crendice!,

No quarto adolescente a se calar,

Com as garras bem no púbis... Como disse?!


Corrijo. Com as patinhas a assolar

Hibernus fantasmais, bisbilhotice

Desértica de ursinho bipolar.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

e Dylan tocava gaita

quando o medo criou raízes
e me plantou em casa
me nocauteando com suas mãos frias
tinha um anjo bêbado de asas negras
no sofá branco da sala

sorria e ouvia Dylan
entendia cada palavra
me oferecia uísque de terras distantes geladas
e eu ali estátua branca enebriada

o anjo bêbado de asas negras
perdido em seus caminhos
parou ali em minha casa
e ouvia Dylan de olhos fechados
no sofá branco da sala

quando o medo criou raízes
fiquei debaixo de suas asas
Dylan tocava gaita
e por um instante nesse instante
os sonhos não tinham medo

segunda-feira, janeiro 19, 2009

estranho silêncio


estranho silêncio que me acompanha
quando não quero ouvir as vozes do mundo
nem saber o que nele acontece
nem de quantos mortos se faz uma guerra
nem de quantos tiros se ilumina uma cidade

estranho silêncio que me atormenta na noite
e me deixa navegar desgovernada desvalida
sem âncoras ou vendavais

enquanto percorro esses caminhos tristes e equivocados
alguns homens tomam cerveja no bar da esquina
e eu queria estar lá

quinta-feira, janeiro 15, 2009

pode ser

se esses olhos de pássaro continuarem me voando
se essa boca disser alguma palavra dócil
se essas mãos insinuarem algum caminho
se esse cheiro me lembrar manhãs de abril
pode ser que os grilhões se soltem
e a pedra que insiste em permanecer em meu peito
se dissolva em milhões de estrelas

quarta-feira, janeiro 07, 2009

possuída

a manhã pede um pouco de gosto pela vida
o sol aparece depois de tanta chuva
acontece que o mofo se instalou nas minhas veias
nos meus cabelos nas minhas unhas
o mofo está cobrindo meus olhos
e criou musgo na minha boca
os sons que chegam são quase inaudíveis
tenho medo de ouvir minha voz
e perceber não ser minha
os gritos da guerra estão próximos
e não os ouço
o coração está úmido e verde
o lodo que cobre as paredes e os muros
tomou conta definitivamente de mim

quarta-feira, dezembro 31, 2008

Ano Novo

Nenhum segundo a mais
espero
para explodir
os dias que estão em mim.

sábado, dezembro 27, 2008

não quero nem ver

Não quero nem ver a hora em que ele chegar
e perceber que os objetos de que mais gostava
estão amontoados no canto da sala
que os seus cedês preferidos
estão empilhados sem ordem
e seus livros adormecem numa caixa de papelão sem cor
que os seus quadros tristes
estão encostados na parede
como se esperassem alguém para os reanimar
Não quero nem ver quando ele perguntar
de suas camisetas desbotadas
que usava para ficar em casa nas horas de folga
e se deitar na cama comigo
que meus lençõis estão com outro cheiro
o travesseiro tem outra forma
e na geladeira outra marca de cerveja
Não quero nem ver quando ele perguntar do nosso gato
e souber que está aninhado em outro colo
Não quero nem ver quando ele descobrir
que os meus olhos brilham mais
e que minha boca tem um outro sorriso