quarta-feira, fevereiro 25, 2009

irreversível

não tire de mim o encanto desse dia
ainda que seus olhos me implorem
e seu corpo se ausente
as lembranças são minhas

e você não pode fazer mais nada
quando a noite me engolir de vez
é esse dia que lembrarei
e você não pode fazer mais nada
não pode fazer mais nada...

(imagem do filme :o homem que não estava lá)

quando acordei



peguei a noite com as mãos
de manhã
meus olhos eram duas estrelas




Noite Estrelada/Van Gogh/1889

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Iluminado

Chegava em casa louco para encontrar o sofá e ver televisão. Quando o sol se ia e a noite ainda não havia chegado, lhe dava uma angústia de morte. Seu peito apertava, vinha uma tristeza esquisita, uma escuridão que invadia seu corpo , sua mente e todos os seus sentidos. Eram alguns minutos que viravam treva infinita. Então, ligava a tevê e era como se iluminasse aos poucos; seus pensamentos tomando outro rumo.

Trabalhava o suficiente apenas para se manter e manter o pequeno apartamento. Conservava-o sempre limpo. Não queria nenhum inseto asqueroso a lhe perturbar a noite, a correr por entre os lençóis.

Sabia de sua inutilidade. Não queria nenhuma ascensão no emprego. Não se engajava em nenhuma causa social, em movimento político, ecológico, cristão, muçulmano, libertário, vegetariano, zen.

Encontrava-se com a família apenas em ocasiões especiais, como festas de aniversário, casamentos ou velórios. Não queria que pensassem que era louco ou solitário. Já havia abandonado os amigos há algum tempo. Ou eles o abandonaram.

O que gostava mesmo, de uma maneira intensa, era assistir à
tevê. Um prazer duvidoso, contudo, mágico. Chegava do trabalho, comia alguma coisa já pronta, vestia sua camiseta rasgada , sua bermuda velha de malha e deitava-se no sofá.
Pegava o controle e percorria com os dedos ágeis os mais diversos canais que a tevê a cabo lhe oferecia. Detinha-se em algum filme, documentário ou qualquer programa que lhe chamasse a atenção. Não tinha mais telefone fixo em casa para não ser incomodado. O celular no silencioso era atendido só em caso de emergência.

Gostava de mulheres, mas não as queria em sua cama ou compartilhando o controle de sua tevê. Isso era inconcebível. Quando seu corpo clamava por sexo, saía e procurava alguma mulher, pagava e se sentia satisfeito. Muitas vezes se fazia carícias, olhando as mulheres nuas que passeavam na tela, contorcendo-se sozinho em seu sofá, soltando gritos roucos e correndo para se lavar no banheiro com cheiro de lavanda.

Uma vez, apaixonou-se por uma prostituta e se encontrava com ela todas as noites e por um tempo esqueceu-se da tela brilhante. Mas, por uma tragédia do destino, ela se atirou do décimo andar de um prédio de luxo. Ninguém nunca soube o que fazia lá ou o motivo de tal atitude.

Um dia faltou ao trabalho, no dia seguinte também, uma semana e mais outra. Nem o porteiro o viu saindo de casa, e os entregadores dos deliveres não apareciam mais. Ligaram para o seu celular, sempre fora de área. Deixaram mensagens. Tocaram o interfone. Arrombaram a porta. Foi assim que entraram e com olhos assustados viram uma luz azul que saía da tevê, um corpo imóvel nu no centro da sala, totalmente iluminado.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Beco da Lua

um dia senti que aquele era o lugar
um beco com casas velhas e malcheirosas
que abria o seu sorriso para o mundo
um beco cujo cheiro de café
misturava-se ao cheiro das moças
que acabavam de ser possuídas

o Beco da Lua
era o nome escrito com letras exóticas
em uma placa iluminada
diferente do próprio lugar

o beco do mundo
em que cabiam
Terezas e Raimundos
Martas e Aparecidas
Antônios e Josés

eram a alma do beco
a música a lua o quintal
a terra a lama a chuva
as paixões os temporais

às vezes quando a lua
insistia em iluminar
viam-se rostos cansados e aflitos
olhos opacos e vazios
fantasmas pálidos e passivos

era o beco maldito
da miséria e do pecado
da luxúria e do abrigo
dos sonhos e dos perdidos
dos gatos e dos vadios
dos poetas e dos mendigos
dos bêbados e dos drogados
dos felizes e dos atirados
dos doutores e dos iletrados
dos caçadores e dos bandidos
das mulheres sem seus homens
dos sedentos de carinho

era o beco da lua
que sorria timidamente
para o outro lado da cidade
em busca de outros delírios
em busca de novos fantasmas



(Um dia tive um bar, era o Beco da Lua,
numa tarde chuvosa destruíram o beco e construíram um edifício de luxo no lugar.Dizem que até hoje muitos fantasmas da cidade rondam por ali procurando um abrigo)

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

era primavera



o último urso branco saiu do estado hibernal
e caminhou lentamente na árida e fria paisagem

abriu seus braços enormes
resmungou sonetos ancestrais
abraçou-se à própria sorte

escancarou seus dentes afiados inúteis
abriu caminhos tortuosos insólitos
mergulhou no lago negro gelado

não viu rastros de homens
nem peixes nem focas nem canibais
viu algas mortas pardos areais

o último urso branco hibernou
e era primavera
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Um poema feito por Henrique Pimenta, a a partir da leitura do meu e que me deixa muito feliz.

Um ursinho para Adriana Godoy

Desde já peço desculpas a você, Adriana Godoy. Eu queria fazer um texto que dialogasse com o seu texto "era primavera", que trialogasse com a foto do mamífero weird, mas troquei as patas pelas mãos e deu no que deu. Entanto, fiz. Tomara que você encontre algo que lhe seja próprio, além da inspiração promovida à picolé de pimenta.



Ursinho


Solar por sobre a neve, meu ursinho,

Sozinho sobre a cama de uma alvura...

De um polo ao outro polo o coitadinho,

Em busca de uma foca, na fissura...


A bicha bem na frente, com carinho,

Se faça de acepipe e, sem tristura,

Banquete para a fera à mesa em linho,

Servir-se de repasto de gordura.


Pelúcia, ai que delícia de crendice!,

No quarto adolescente a se calar,

Com as garras bem no púbis... Como disse?!


Corrijo. Com as patinhas a assolar

Hibernus fantasmais, bisbilhotice

Desértica de ursinho bipolar.